Foto: Tarcísio Filho |
Quixeramobim, um território transpassado pelo rio que leva o seu nome, prenuncia a realização de uma relação perene. A cidade, que nasceu e cresceu às margens das águas ribeirinhas, é cenário de tramas encantadas que conectam indivíduos, cidade e rio.
Foi conversando com os mais antigos que compreendi alguns desses vínculos surgidos à beira d’água. Um deles pode ser desvendado através de um velho e perdido costume, o de coletar água das cacimbas, que eram pequenas cabanas feitas de palhas existentes no leito do Rio Quixeramobim. Nas primeiras décadas do século XX não havia serviço de encanamento doméstico, e por isso a população precisava ir até as margens do rio para encher baldes de zinco chamados de canecas, que eram transportados por jumentos. Assim, numa comunicação direta, o rio fornecia o líquido essencial.
Havia intimidade com o rio, e ele era parte essencial da vida das pessoas. Na cartografia do leito pedregoso, existiam até lugares preferidos. Ele era local de diversão, ponto de encontro e referência. “Ei, a gente se encontra na Pedra do Luís Cinico.”
Mas o tempo passou. Anos, décadas, implacáveis, transformaram o que era comum em lembranças. A falta de um bom inverno trouxe a estiagem da última década, fazendo o rio secar, e aos poucos ele foi deixado ali, escondido atrás das casas erguidas de costas para ele, antipáticas, margeando o seu leito, ignorando-o. Na fluidez do cotidiano, ele foi esquecido, mas sempre esteve ali, intermitente no seu transbordar, e constante no seu existir. Adormecido.
Consequentemente, não surgiu nos mais jovens da cidade o mesmo elo que unia os mais velhos com o flúmen. Eles não conheciam o seu espírito, não o tinha mais em suas intimidades. Alguns poderiam até escutar as antigas histórias, mas não imaginavam como era realmente sentir o rio. Já eram órfãs.
Então a boa chuva veio, a seca findou e após doze anos com seu leito praticamente seco, aflorou a esperança de vê-lo acordar. Entre as centenas de curiosos que diariamente se amontoavam na ponte da barragem, predominava uma expectativa tensa. Tempos modernos, transmissão ao vivo. Por quanto tempo ele dormiu? Observavam ansiosamente a subida do nível das águas. Será que seria naquele ano mesmo? Olhares atentos e curiosos. Uma ânsia ao despertar. E em meio àqueles olhares, uns até diziam ver a respiração dele. “Viu só, aumentou três centímetros”. Como se o peito dilatasse. “Acho que hoje baixou um pouco”.
E como quem desperta de um sono profundo, ele acordou, silencioso e calmo, bocejando por suas quinze bocas. Aquele despertar foi lento, afinal, foram muitos anos dormindo. As primeiras águas escorreram, e depois ele falou, sem parar, e agora todos o escutavam, num chiado de águas espumosas, o que ele tinha pra dizer. “Quantos rostos novos”. Por cima da ponte, dizia-se poder sentir uma vibração, como o pulsar de um coração que fazia tremer as pilastras da barragem. Aos poucos alguns jovens começaram a se aproximar, e os mais novos, tão empolgados com o evento, não queriam somente escutar o que o rio tinha pra falar. Queriam mais. Queriam abraçá-lo, tocá-lo e senti-lo por completo, pois estava magnífico! E saltaram, e saltaram, e saltaram. De braços abertos, de cabeça, lançando-se, conhecendo-o por inteiro. Uma conexão se formou ali. Tornaram-se filhos do rio.
Depois de alguns dias de conversas, abraços, fotos, risos e saltos, o rio dava sinais de que cansava, e aos poucos a vazão das suas bocas diminuía de volume. Lentamente ele se recolhia. Naqueles dias de rio cheio, o cotidiano da cidade teve um novo som, escondido no meio das casas ribeirinhas, as pessoas escutavam a sua voz chiada. Novas relações foram formadas. Seus filhos agora desejavam que, dessa vez, ele não tivesse um sono tão profundo, com o próximo inverno de chuvas fortes e trovões barulhentos para acordá-lo novamente.
Eduardo Coutinho
Quixeramobim Histórico
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