sábado, 15 de julho de 2023

Amazônia: a batalha da borracha


Ao ingressar nesse interessante tema tornou-me impossível deixar à sua margem o mais intrigante e fatídico episódio amazônico que foi a construção da ferrovia Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e, por via de consequência, adentrar às razões e fundamentos que levaram o Brasil e a Bolívia a enfrentar empreendimento tão desastroso, assentado, essencialmente, na necessidade de viabilizar o transporte de borracha entre a segunda (Bolívia) e o oceano atlântico, através do Rio Madeira.

Ao se ler várias obras sobre o assunto, nos deparamos, dentre outras realidades, com a origem das    populações   atuais do Acre e de Rondônia, compostas de milhares de descendentes de nordestinos, cujos ascendentes para ali foram deslocados pelo governo brasileiro para exploração da borracha.

A história começa durante e, mais acentuadamente, no período final da segunda guerra mundial, quando as nações aliadas – Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos – sentiram-se privadas de todo o suprimento de borracha, matéria prima estratégica para suas atividades bélicas, isto porque, o Japão, um dos países do Eixo, ao ser derrotado no conflito de Pearl Harbor apoderou-se dos seringais da Malásia, fonte inesgotável e desse produto.

Premidos pela necessidade de obter novos fornecedores, os americanos de logo passaram a implementar medidas destinadas a superar a carência, dentre elas várias investidas em países da América Latina, que já produziam a borracha natural.  Nesse desiderato propunham acordos vantajosos para os países envolvidos, providência que logo recebeu a apelidação de “Batalha da Borracha”. O aumento de produção exigia numerosa mão-de-obra inexistente na região escolhida, a Amazônia, que sempre teve baixo índice populacional.

Chegara a vez dos nordestinos, ante a negativa do Brasil em importar porto-riquenhos, como proposto pelos americanos. A empreitada envolveu , ao todo uns cinquenta e cinco mil (55.000) conterrâneos, contabilizados operários e suas famílias, cujo  agrupamento  passou a constituir os conhecidos “exército da borracha”, ou “soldados da borracha”, atraídos por acirrada campanha governamental brasileira que usava de dois argumentos fundamentais para convencimento dos convocados a se deslocarem para a região amazônica – fome causada pelas intempéries da seca no  nordeste  e dispensa de convocação para linha de frente da guerra, i.é, para nossos conterrâneos era facultado o enfrentamento dos males  da Amazônia ou o enfrentamento da guerra em território italiano, através do engajamento na Força Expedicionária Brasileira- FEB.

Nessa época presidiam os EE.UU. e o Brasil, respectivamente, Delano Roosevelt e Getúlio Vargas, governos responsáveis por essa jornada de triste final, porquanto jamais esclareceram a esses pobres nordestinos sobre os perigos da Amazônia, principalmente as doenças tropicais e os animais selvagens que mataram milhares desses nossos conterrâneos.

Embora atendesse a demanda as investidas iniciais na atividade planejada, entraves de toda espécie surgiram na empreitada, a primeira delas o deslocamento dos trabalhadores através de navios e, até, em hidroaviões do modelo Catalina, que tinha a capacidade de aterrisagem em terra e na água.

Outra, a concentração dos operários e de suas famílias em galpões improvisados que denominavam de pousos, a maioria sem divisões que ensejassem o mínimo de privacidade dos ocupantes, surgindo, daí, inevitável prostituição e consequente aparecimento de mazelas comuns na região.

Outro problema era a deserção de trabalhadores dos seringais para as zonas urbanas, notadamente para Manaus e Belém, onde se envolviam em reiteradas confusões, bebedeiras, arruaças, prática de mendicância, etc., condutas que os levaram à repulsa pelos habitantes das cidades prejudicadas.    

A saga dessa etapa é muito extensa e até cansativa de se percorrer, pelo que salto algumas de suas fases para adentrar ao tema “Madeira-Mamoré”, a “Ferrovia do Diabo”, não sem antes recomendar aos interessados a leitura da obra de Pedro Martinello, “A Batalha da Borracha”, considerada a mais completa sobre o tema. Pois bem, estabelecendo a ligação da “Batalha da Borracha” com a “Madeira-Mamoré”, é inevitável constatar-se que o projeto desta está umbilicalmente ligado aos interesses daquela.

Com a referida escassez da borracha provocada pelo Japão, durante a segunda guerra mundial e o interesse dos Estados Unidos e do Reino Unido, principalmente, pela produção dos países da América Latina, como salvação para seus interesses, Brasil, Bolívia e Peru, como já relatei, apresentavam-se como foco central dessa política, posto serem os grandes   produtores de borracha natural oriunda da seiva da seringueira.

Brasil, integrante da América Portuguesa e Bolívia e Peru, da América Espanhola, o primeiro e o último com pleno acesso aos mares, enquanto a segunda com seu território encravado entre montanhas e planícies, tinha enormes dificuldades em exportar sua produção, porquanto o transporte aéreo àquela época era bastante caro.

Por questões políticas, o uso do solo peruano pelos bolivianos tornara-se impraticável, principalmente porque, desde 1825 a Bolívia proclamara sua independência, através de Simon Bolivar, desligando-se, assim, do império espanhol.

Imaginou-se, inicialmente, a criação de uma rota de exportação pelo Rio da Prata, mas outros entraves inviabilizaram o prosseguimento dos estudos. Chegara a vez do Brasil, um país amigo que obstáculos não apresentaria à pretensão, até porque era possível aliar os interesses das duas nações em um só meio de transporte e, aí, surge a ideia da implantação de outra via navegável através   do rio Madeira, manancial que atravessa os dois países.

Durante os estudos de viabilização da obra, no entanto, surge um grande problema ainda   não previsto – as cachoeiras do caudaloso rio, intransponíveis pelos diversos veículos de navegação até então disponíveis. Imaginou-se, por exemplo, a criação de equipes especializadas em transporte terrestre que encarregar-se-iam de fazer o transporte, por via terrestre, de mercadorias das   cachoeiras para retorno ao leito do rio, equipes essas a serem remuneradas e controladas por via governamental que cobraria taxas aos comerciantes pelos serviços prestados.

Outra solução seria a utilização de canoas resistentes à queda das águas, capazes de proteger as mercadorias transportadas, que, em caso de avarias, seriam indenizadas pelos governos responsáveis pela criação dessas equipes.

Diante da frustração dessas propostas, pensou-se na construção de trechos de estradas terrestres ligando uma cachoeira a outra, opção igualmente descartada em razão da distância entre a primeira e a última queda, em torno de quatrocentos (400) quilômetros, a serem percorridos por meio de burros e carroças.

Surge, então, a ideia da ferrovia.  Brasil e Bolívia decidem bancar sua construção, especialmente porque nosso país, paralelamente aos seus interesses comuns com os bolivianos, já procurava, àquele tempo, estabelecer uma vida de acesso ao Mato Grosso, Estado também afastado da orla marítima.

O primeiro passo para concretização da proposta veio na celebração de um acordo, através do Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição, firmado pelos dois países, no qual, em seu artigo 6º. Estabelecia:

Art. 6º. – Sua majestade o Imperador do Brasil e a República da Bolívia convém em declarar livres as comunicações entre os dois Estados pela fronteira comum, e isento de todo imposto nacional ou municipal o trânsito por ela de pessoas e bagagens, que ficarão sujeitas unicamente aos regulamentos policiais e fiscais, que cada um dos dois governos estabelecer em seu território.”

A partir desse momento histórico pretendo adentrar ao tema central, a ferrovia do diabo, história bem interessante, mas bastante longa, utilizando-me de um novo espaço, em artigo posterior.
                                                                                                           
                                Raimundo Araújo
Advogado e Promotor de Justiça
 

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