sexta-feira, 23 de junho de 2023

Domingos Verdes


Por esses dias andei contabilizando por mero exercício de curiosidade quantas espécies de aves silvestres já fotografei pelas matas da caatinga de 2016 para cá. O número passa de cem. A atividade de observar pássaros, reconhecê-los pelo canto (ornitologia) e fotografá-los é tão prazerosa e terapêutica que nem me dei conta da expressiva marca alcançada, mesmo exercendo meu agradável passatempo apenas aos domingos, quando as obrigações cotidianas dão uma ligeira trégua.

Andorinhas, bem-te-vis, corujas, freirinhas, pica-paus, sabiás, tico-ticos... não sou capaz de eleger uma ave preferida, já que todas me causam fascínio, seja pela exuberância das cores ou pela sinfonia orquestral que produzem. Mas certamente posso elencar as mais desejadas para um clique. As ariscas e as raras na região, cujo registro é uma façanha – o troféu do fotógrafo – são também as mais cobiçadas. Dentro do que já cataloguei, talvez o Pica-pau-de-topete-vermelho (Ampephilus Melanoleucos), que ilustra esta publicação, seja meu maior feito. Na verdade, não é o fotógrafo quem captura pássaros por meio de suas lentes, mas, sim, é capturado por eles. Essa ave me capturou desde o ano passado, quando me deparei com ela pela primeira vez, no carnaubal do Salva Vidas, em Quixeramobim. O tamborilar forte no tronco das carnaúbas ecoando de dentro da mata denunciava sua presença imprevista. Eu, até então, só dava conta de pica-pau no desenho animado de minha tenra infância.

Meu entusiasmo com a fotografia de natureza teve início acompanhando as reportagens do Demitri Túlio, premiado jornalista cearense de O Povo, dentro do Parque do Cocó, em Fortaleza. Demitri abraçou a causa ambiental dentro de sua atividade e já comprou muita briga com os donos do capital em defesa das reservas ecológicas que ainda insistem em existir. A natureza sempre insiste em viver. Também me enche os olhos o trabalho do célebre Araquém de Alcântara, catarinense, dos mais talentosos fotógrafos de vida selvagem brasileiros.

A magia acontece sob chuva ou sol ardente, mata adentro. Óculos embaçado, mosquitos, insolação, touro valente na estrada, cachorro atrevido latindo. A foto extraordinária tem seu custo. A natureza exige precauções, pois, apesar de bela, oferece seus riscos, desde picadas de mutucas traiçoeiras, ataques dolorosos de maribondo, até o perigo real de serpentes. Um par de botas, chapéu, roupas que cubram bem o corpo, preferencialmente com estampas que permitam camuflar-se por entre o verde da mata, e protetor solar fazem parte dos paramentos de um fotógrafo de vida selvagem.  

Existe um termo de que gosto bastante - ciência cidadã. Fotógrafos de natureza, movidos pelo encantamento irremediável que os arrebata, tendem a assumir o papel de guardiões da vida natural. Deixam de ser meros observadores e desenvolvem consciência ecológica. Apuram os sentidos. Aprendem e disseminam saberes. Animam novos observadores. Mostram ao mundo encegueirado pelo excesso de estímulos que a vida pode ser simples e não menos bonita.

Os ponteiros do relógio correm na mesma velocidade para todos, mas os dias podem ser mais calmos conforme o ritmo que damos a eles. Fotografar aves silvestres pode ensinar até mesmo essa valiosa virtude humana: a da calma. O tempo da natureza sobrepõe-se ao ritmo dos homens. O clique espetacular não acontece quando queremos, mas quando a ave permite. Eis aí o exercício da paciência, raridade na era das coisas prontas. Os domingos verdes são o respiro para não enlouquecer frente a afobação do mundo de concreto.  Ademais, em tempos de egos inflados e selfies sem graça, sou mais tirar foto de passarinho.

Gabrielly Frutuoso

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