terça-feira, 1 de agosto de 2023

O Empenho do Menino


Naquela manhã quente, o menino se danava no terreiro dos fundos da casa do sítio, no Amanaju. Primeiro ele brincou com o peão. Já tinha alguma habilidade com o instrumento, e conseguia pegá-lo no ar, pondo-o girando no centro da palma da mão. Depois de enjoar dos lançamentos, foi fazer mira com a baladeira feita pelo avô, tentando acertar uma lata velha e enferrujada que tinha colocado enganchada numa das estacas da cerca que circundava o terreno da casinha. Aquela manhã passou rápido para ele. 

Da porta entreaberta da casinha, o tio o chamou. 

– Menino, corre agora, senão tu vai perder o trem! 

Com toda a diversão daquele momento, ele tinha esquecido totalmente que era o dia de voltar para casa, no centro da cidade, e assim deixar a alegria do sítio dos avós para trás. Já eram dez e meia da manhã, e o trem passaria na estação às dez e quarenta e cinco. 

Com o avançar da hora, ele não tinha mais tempo para se lavar e se trocar, muito menos para pegar suas coisas, uma pequena malinha organizada pela mãe. Era o tio quem tinha o costume de sempre deixá-lo na estação, no lombo do jumento, mas àquela altura não daria mais tempo para isso. 

– Menino, pega a bicicleta, e corre! Pode ser que dê tempo ainda! Anda! — gritou outra vez o tio vendo que ele parecia imóvel. 

Durante alguns segundos que ficou parado, o coração do menino acelerava enquanto ele se dava conta de que, se perdesse o trem, os pais não o deixariam mais voltar para o sítio. Após o raciocínio, ele soltou a baladeira ali mesmo e, ainda sujo das brincadeiras no terreiro durante toda a manhã, saiu correndo, desembestado, com os pés quase batendo na bunda de tanta intensidade que impunha às pequenas pernas. Depois de arrodear a casa numa corrida de um fôlego só, encontrou a bicicleta encostada embaixo da sombra do velho pé de algaroba que tinha no terreiro da frente. 

Tentando empreender a máxima velocidade possível, o menino fez carreira empurrando a bicicleta com as mãos e, quando o pequenino corpo se deu conta inconscientemente de que atingira a máxima rapidez que conseguiria com as pernas, pulou na cela, saindo embalado pela estrada de terra. Da janela da casinha, o tio via o rastro de poeira fina deixado para trás. 

Tuuuu! Tuuuu! O menino já escutava o apito da locomotiva que se aproximava, escondida por detrás dos serrotes. 

O caminho pela estrada principal que levava até a estação era longo para o pouco tempo que ele ainda tinha. Também pensou no alto que sempre o fazia descer da bicicleta e a empurrar devido à grande inclinação. Era difícil subir por ali até mesmo a pé. Isso tudo o faria se atrasar e perder o trem. 

Foi então que decidiu cortar caminho por meio de uma vereda que conhecia. Por lá ele teria alguma chance. Conseguiria fazer o percurso na metade da distância. 

Então ele enveredou! Cortando a densa mata seca, os espinhos da jurema arranhavam-lhe a pele acinzentada pelo sol intenso que pegou no sítio naqueles três dias. Quando estava na casa dos avós o menino passava o dia fora. Era livre. Se não estava entre os animais em algum curral com o tio, estava no meio dos matos com sua baladeira e o bornal a tiracolo, cheio das pedras das mais arredondadas que conseguia achar, tentando derrubar uma rolinha descuidada ou acertar uma lagartixa relaxada. 

Para evitar os arranhões dos espinhos que começavam a lhe arder a pele, o menino então encolheu os braços, encostando os cotovelos nas costelas. Isso o fez perder um pouco do equilíbrio, mas ganhou em velocidade. 

Tuuuu! Tuuuu! Ele escutava, agora de dentro da mata seca, a locomotiva. Dessa vez parecia mais próxima, pois o som era mais alto. Então ele acelerou mais e mais, freneticamente, e não se importou com os arranhões. 

“Trec”, “trec”. Ele sentiu a corrente mordendo. Aquela era uma bicicleta velha e enferrujada, que já o tinha deixado na mão outras vezes, sempre com a corrente soltando. Se isso acontecesse agora, era o fim, perderia o trem, que só passava uma vez ao dia naquele mesmo horário. Ele sabia que se isso acontecesse, os pais não o deixariam mais voltar para o sítio, o seu lugar preferido. 

Pedalou cada vez mais rápido. Tinha que arriscar. “Trec”, “trec”, “trec”. As mordidas se intensificaram, mas agora ele já via a mata se abrindo no final da vereda. 

Assim que ele desenveredou… “Trec”! A corrente partiu ao meio. 

Tuuuu! Tuuuu! Ele escutava a locomotiva agora quase do lado dele. Jogando a bicicleta inutilizada no chão, o menino começou a correr com tanta intensidade que a cabeça pendia para trás. Os cabelos que antes vinham grudados no suor da testa, agora se balançavam no cocorote ao vento. Os chinelos de couro ficaram no meio do caminho, com os cabrestos torados. Não daria tempo… 

“Tiiiiiim”, agora ele escutava um barulho metálico, de ferro rangendo. Era o trem freando, ferro com ferro. Parando de correr, já sem fôlego, o menino viu a estação. Conseguiu! Tentando buscar um fôlego, apoiou as duas mãos nos joelhos. Deu um gole seco que fez descer somente vento pela garganta. Fez uma careta. “Arri!”. Sentia muita sede. 

Já dentro do trem, a vontade de beber água o incomodava mais, era nauseante. Sem dúvidas aquele foi o maior esforço que ele fizera em toda a vida. 

Por sorte, levava no bolso do calção sujo alguns poucos centavos, mas que eram o suficiente para comprar um copo d´água na próxima parada. 

Quando o trem chegou na estação de Lacerda, ele desceu na pequena plataforma e viu que um moleque, que aparentava ter a mesma idade que a dele, sentando a uma mesinha de madeira, vendia copos d´água de uma quartinha de barro. Ele se aproximou e pagou por um. “Aaaaah”. Que sensação prazerosa. A água estava gelada do barro frio e desceu pela garganta dele rasgando a sede que o maltratava. 

“Fiiiiii”. Um silvo fino, vindo do trem, era o sinal de que ele partiria novamente, continuando a viagem. Dependurado na porta aberta da locomotiva, ele via a movimentação da plataforma passando diante de si, quando então, “chilepe”! Sentiu uma quentura no rosto, que desceu numa ardência fina pelo peito. Foi uma chicotada. O moleque, vendedor d´água, tacou-lhe uma lapada de chicote no rosto, sem ver nem pra quê. Num instinto de impulso de vingança, o menino impulsionou o corpo para frente, pensando em pular do trem para se atracar com aquele moleque mal educado. Enquanto soltava uma das mãos que segurava no vagão, ele raciocinou. Se pulasse, perderia a viagem para casa. Uma perna já estava estendida no ar. Ponderou. O revide valeria perder os passeios ao sítio? Recuou. 

Sentado no banco do trem, agora ele via, pela janela da cabine, a mata seca do sertão passando desfocada enquanto tocava o rosto, sentindo o inchaço quente causado pelo golpe do moleque vendedor de água. Finalmente chegou em Quixeramobim. O seu grande empenho valeu a pena. A mãe o esperava na estação. 

Assustada com aquela marca vermelha no rosto dele, e todos aqueles arranhões nos braços, ela disse: 

– Menino, toda vida que tu volta é uma novidade. Ave Maria, tá todo sujo de terra! E o que foi isso no seu rosto?! Tá todo arranhado! Olhe, você não volta mais pra lá não, viu?!

Por Eduardo Coutinho
Instituto Quixeramobim Histórico

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