sexta-feira, 16 de junho de 2023

Para Aderaldo, com amor


Por esses dias de festa em Quixeramobim, em celebração ao padroeiro Santo Antônio, durante visita que fiz à quermesse e ao shopping popular que se ergue na praça central da cidade, deparei-me com a apresentação dos repentistas Damião e Lourival, ambos naturais desta terra. Homens de pouco ou nenhum estudo, mas herdeiros de um saber popular que atravessa o Nordeste há mais de duzentos anos. 

Damião Monteiro, 62 anos, homem do campo e do canto. É irmão, filho e sobrinho de violeiros, saber artístico que exerce desde os 7 anos de idade. O Repente não foi apenas herança familiar. Os programas de rádio dedicados às cantorias capturaram completamente a atenção daquele menino, que há 45 anos jamais abandonou a viola. 

Lourival Bezerra, 74 anos, ganha a vida como comerciante, mas a cantoria lhe exerce verdadeiro fascínio. Nisso, puxou à mãe, que era apaixonada pelo Repente. Toca viola e faz improviso desde os 21. Apresenta o programa “Violas da Minha Terra”, na rádio Difusora Cristal, em Quixeramobim. 

Encontrar Damião e Lourival fez-me lembrar de Aderaldo, não o Cego Aderaldo, o também poeta popular, que neste mês de junho recebe homenagens por toda parte pelos seus 145 anos de nascimento. O personagem de minhas memórias é o Aderaldo meu avô, que não era poeta, mas um exímio ouvinte do cancioneiro de viola nordestina. Lembro-me nitidamente de seu hábito religioso: após a lida do dia de todo homem nascido no sertão, na hora do crepúsculo, caminhava pelo corredor lentamente, arrastando o chinelo, até sentar-se na cadeira posicionada diante da mesa na cor azul del rei, em um canto da sala de estar (foto). Ali era uma espécie de santuário onde ele guardava tudo que lhe era caro. Caro não na moeda dos homens, mas na moeda dos afetos. Uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, a bengala, o diploma da Irmandade da Terra Santa, o Cristo e o rádio. Pelas ondas daquele rádio, Aderaldo abraçava o mundo, tomava contato com as coisas da cidade, ouvia Luiz Gonzaga, acompanhava a missa e apreciava as poesias cantadas pelos violeiros.

     

A música é mesmo um ativador de memórias. Não há como ouvir um Repente e não ser resgatada de imediato ao início dos anos 90, quando essas memórias foram registradas no HD do coração. As memórias mentais até estão sujeitas ao apagamento, mas memórias do coração são imunes ao poder corrosivo do tempo. 

Para Aderaldo, com amor. 
Gabrielly Frutuoso

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