sexta-feira, 26 de maio de 2023

Gabrielly Frutuoso convida o leitor para um Café com Prosa

Lamparina em aquarela
Hudson Silva (Artista Plástico)

Este espaço pretende ser um recanto de pensamentos soltos e insubmissos, desses que nos tomam sem razão aparente, às vezes passam sem deixar rastro algum, outras vezes teimam, ficam, puxam uma cadeira e nos chamam para conversar no limiar do peito adentro. Lendo o amigo Bruno Paulino em crônica escrita para este site, tomei contato com a definição que ele dá ao seu espaço de escrita aqui reservado. "Abrigo de ideias" é como ele chama sua coleção de textos que estarão guardados aqui, nesta página. Guardar não no sentido de trancar ou colocar dentro de um baú ou de uma gaveta. Mas guardar no significado mais elevado que se pode dar à palavra. Antônio Cícero, poeta de sensibilidade singular, prefere pensar que guardar algo é iluminar esse algo. Quando nos referimos ao gesto de escrever, as ideias de Bruno, a partir de lidas se tornarão lâmpadas acesas, isto é, iluminadas e, então, aí sim, guardadas, não em uma coluna de crônicas ou no papel onde foram escritas, mas nos lugares mais íntimos de quem as lê. Tomando essa inspiração por empréstimo, posso dizer que aqui guardarei pensamentos. Toda leitura fica melhor acompanhada por um café quentinho, sendo assim, chamaremos esta nossa conversa de Café com Prosa.

Lamparina 

Por esses dias, um cheiro em particular tomou-me, fazendo reavivar as mais distantes memórias. É verdade, sou assumidamente uma pessoa apegada às coisas à moda antiga e não me causa nenhum deslumbre a modernidade e seus apetrechos, muitas vezes desnecessários. Sobre o cheiro objeto de minha saudade, só de pensar, posso senti-lo tomar-me os brônquios e pulmões como se fosse uma coisa viva e presente. Não se trata do cheiro de bolo saindo do forno, nem de café coado na hora. Não era cheiro de lençol, nem de neblina, tampouco de mato úmido. Não era de flor, e nem de roupa limpa. O cheiro que me abatia em saudades, meus amigos, era o cheiro de lamparina. 

Nos idos de 1990, as temporadas na Santa Helena, fazenda de meus finados avós Aderaldo e Branca, tinham cheiro de lamparina. As crianças jogavam bola no campo improvisado de terra, que ficava entre a casa-grande e o açude no baixio do sítio, onde havia pés de banana coruda, caju, graviola e jerimum caboclo. Aliás, naquele tempo, faltava tudo, mas não faltava um caçuá de banana coruda madura. O jogo não durava noventa minutos, sempre ia aos acréscimos, e o apito final só se dava quando já se impunha o breu da noite. A menineira chegava em casa faminta e imunda de poeira. Nas casas tipicamente sertanejas se tomava banho de cuia, com água de tanque ou cisterna. Água encanada era coisa distante, privilégio da gente urbana. A noite era iluminada pela chama da lamparina. Meus avós eram os primeiros a se recolher, isso porque, no sertão, o dia de quem trabalha termina mais cedo e o levantar precede a aurora, com café passado antes do sol clarear. Na sala, as mocinhas e rapazotes jogavam cartas e trocavam olhares. As tias concluíam as tarefas da cozinha e falavam alto que dava pra ouvir por toda a casa. Circulando de um canto para outro ficavam as crianças fazendo peraltices. Eu, do alpendre que recebia só frechas de luz vindas da sala, observava os movimentos e sentia o cheiro de querosene trabalhando dentro da lamparina. Lá fora, dois benjamins centenários faziam a vigília da casa. 

Não é exatamente do aroma de combustível queimando ou da fuligem provocada por ele de que sinto saudades. O arrebatamento vem de outros planos, para além de um acontecimento meramente físico. O mesmo fogo que queima para iluminar a vida, é o que arde o coração de quem lembra o quanto já fora feliz. Aquele cheiro da chama vermelha da lamparina remete a cenas já pouco vívidas, esmaecidas pelo correr do tempo. Mas há nele, no cheiro, que sinto agora mesmo, enquanto escrevo, uma centelha das mais insistentes lembranças, aquelas que, mesmo distantes, fazem parte do que somos constituídos. Lembranças de instantes incapturáveis são o tecido que nos faz gente. Gente de carne, osso e saudade. 

Gabrielly Frutuoso

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